Terapia com ela: ficar ou partir


James Dean


Os estudos dizem que a terapia online produz os mesmos efeitos que a terapia presencial, mas eu prefiro estar consigo assim...  prefiro que os nossos encontros e as nossas trocas sejam aqui, mesmo com as cadeiras mais afastadas que o habitual. Talvez por ser das poucas trocas verdadeiramente humanas que me restam, onde existimos os dois num plano não mediado por tecnologia. 


Lembra-se das nossas primeiras sessões? Eu estava tão tenso e hipervigilante em relação a si que, enquanto falávamos, eu segurava sempre o telemóvel – podia ser uma caneta, podia ser um cigarro, podia ser um copo de cerveja – podia ser qualquer coisa desde que ocupasse este espaço “entre” (nós).   E permanecemos assim durante tantas sessões. Éramos três. Eu, você e aquela qualquer coisa. Até que me disse: “parece ter necessidade de mexer nalguma coisa” e eu sorri e respondi-lhe “é do hábito!” 


Ficámos em silêncio. 


Olhei para as mãos suadas que seguravam o telemóvel e a partir daquele lugar de desconforto, as palavras escorregaram: “quando tenho alguma coisa nas mãos, não me sinto tão vulnerável.”  Aquele objeto era uma fuga - uma fuga à minha própria vulnerabilidade.

 

Até que me perguntou: “E se não fugisse, como é que seria? Como é que seria estar vulnerável aqui, nesta situação, sem essas coisas, sem esses objetos entre nós?”

 

Se calhar, é esse o verdadeiro motivo que me traz cá. Saber estar perto do outro sem me perder, sem me deixar engolfar pelo outro. Eu estou sempre preocupado com a hora de partir de todos os lugares aonde acabo de chegar. Em tempos pensei que esta inquietude era uma mais valia, própria de um traço mais curioso, autónomo, aventureiro, de abertura para novas experiências, para pessoas e vivências. Repito. De abertura em relação ao outro.

 

Algo não está certo. Será que esta euforia para partir seja, na verdade, uma fuga à minha dificuldade de simplesmente ficar? Eu compro bilhetes de avião, de comboio, mostro a minha galeria de fotos a todas as miúdas que conheço e elas olham-me com entusiasmo à espera de um convite. Mas os meus bilhetes nunca são duplos. Eu não espero companhia para além de um breve jantar e de uma breve conversa. 


Se calhar o miúdo sou eu. Se calhar elas não estão à espera de convite nenhum, mas estão a oferecer-me um convite para parar um pouco e para crescer, para mudar, para aprender e partilhar, para estar junto, e pensar junto, e sentir junto.  É possível que se eu conseguisse estar junto, talvez desfrutasse mais daqueles momentos em que estou sozinho, como aquela frase que diz: "apenas nos conseguimos separar bem, se estivermos bem ligados por dentro." 


(Silêncio)


Quando começámos as nossas sessões, eu achava que esta terapia também ia ser breve, que me podia sentar aqui com o telemóvel na mão, quase pronto para lhe mostrar e lhe contar sobre as minhas viagens, mas logo percebi que o destino agora era outro, o destino era eu mesmo. E desta vez, tinha de viajar na sua companhia e ainda tinha de lhe pagar pelo desconforto, pelas mãos suadas, pelas quedas e pelos estragos, pelo extravio das malas, pelas vezes em que cancelei com a desculpa do trabalho e de outros compromissos.  


Depois veio a pandemia e nunca mais cancelei nenhuma consulta. A nossa relação tinha finalmente passado para o mesmo plano de todas as outras relações; as minhas mãos já podiam estar livres e eu podia trocar este sofá pelo meu lá de casa, para me sentir, finalmente, capaz de estar perto de si. Ligar e desligar o contato consigo sem me levantar do sofá. 

 

A pouco e pouco, comecei a sentir falta das viagens de carro até ao consultório, do nervosismo, senti falta destas paredes e deste sofá e... desculpe dizer-lhe... senti falta da possibilidade de lhe ver os sapatos. Não se ria. Naquele écran e naquele formato online, eu só lhe conseguia ver a cabeça e a sua coleção de camisas, mas eu precisava de ter uma troca simplesmente humana sem écrans, sem telemóveis, sem apps, onde a pudesse ver inteira.

 

Há uns tempos conheci uma miúda e, apesar do meu impulso para partir outra vez, eu gostava de conseguir ficar. Temos os dois jeitos meios atrapalhados e desconfio que nunca iremos estar muito bem preparados um para o outro. Pensei no que você me disse na semana passada, pensei naquela frase do famoso psicanalista que diz que já que duas almas se encontraram e que uma tempestade emocional aconteceu entre elas, talvez  se possa arranjar uma forma de tornar proveitoso um mau negócio. 


Temos falado, quase todas as noites, a partir de sofás distantes. Ela no dela e eu no meu. E vamos para a cama mais aconchegados; ela vai para a cama dela e eu para a minha. Às vezes acho que estamos mais aconchegados do que casais que dormem juntos, mas então... porque será que me custa tanto estar perto dela?

 

continua...

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