Hoje ouvi uma palestra do filósofo brasileiro Luiz Felipe Pondé, a propósito da inveja: "A inveja é um pecado relacional - eu preciso de um outro para odiar e ter inveja."
É humano sentir inveja e não temos de transcender esses sentimentos negativos. "Não há nada que não seja humano dentro de nós", já dizia a professora Medina.
Contudo, penso que não há muito espaço para admiti-la, para reconhecê-la, para falar sobre ela e para chorá-la, até, com raiva, com todos os sentimentos destrutivos que ela acorda em nós e que são tanto mais intensos quanto maior é a nossa falha narcísica, de valorização pessoal, quanto maior é o nosso sentimento de inferioridade.
E assim, é no silêncio que a inveja causa dano: ao outro - se ele se deixar animar facilmente por emoções alheias - e, sobretudo, ao próprio. Dano afectivo, relacional, dano intelectual, até. Por exemplo, a nossa percepção da realidade vai ficando mais limitada, vamos empobrecendo a nossa vida, ao focá-la no outro e na comparação com ele. E enquanto o outro cria, brilha e produz, eu continuo na plateia, a assistir. Fico horas, paralisada, a ser uma espectadora da vida do outro, nas redes sociais, em vez de enriquecer e alargar as minhas experiências e a minha própria existência.
O efeito deste teatro ao qual eu assisto, é tudo menos catártico. É essa a ficção da vida contemporânea, onde o mundo paga um bilhete para uma peça que nunca mais termina, uma peça sem função catártica, e em vez da catarse, a peça produz tensão interna, aumenta o desconforto, enquanto se espera pelo último ato que nunca mais chega.
E qual é o tema da peça? É a própria ficção de tudo isto que vivemos. Enlouquecemos. Se dantes havia casas com telhados de vidro, hoje são as casas inteiras que são de vidro. Vidas de vidro. A quarentena foi o maior exemplo disso. Lá íamos assistindo a episódios da intimidade alheia na ilusão de estarmos mais próximos. E quanto mais o outro se expõe, mais eu dou conta da minha própria falta e fraqueza. "A celebridade do outro acorda o meu Zé ninguém interior. É a própria vida transformada num instrumento de marketing", já dizia o filósofo Luiz Felipe Pondé.
Como é que se resolve a inveja? Pondé responde: "Resolve-se com humildade. Se calhar a vida do outro é realmente melhor que a minha. Se calhar o outro é mesmo melhor que eu e se não for, então ele mente melhor que eu. É melhor que eu até na mentira!
A ideia de ser o melhor é uma ficção é uma "batalha perdida". Não existe. Porque algures na vida vai haver sempre alguém melhor que eu e mesmo que eu seja a melhor, o mais certo, é que não consiga permanecer a melhor durante o tempo todo e que vá oscilando. Talvez esta aceitação e humildade alivie o nosso sentimento de inveja.
Há quem defenda que a inveja pode ser boa, porque o outro é tomado como exemplo e como modelo identificatório.
Duvido.
Podemos conversar sobre isso. Os exemplos são para ser admirados e enchem-nos de gratidão porque nos inspiram e isso, é o oposto da inveja.
É humano invejar, mas cabe-nos a nós acolher e até compreender a nossa inveja e a do outro. E é só pela transformação desse sentimento noutros mais maduros que vamos crescendo e tendo compaixão por nós e, pelas nossas falhas básicas, de amor e de auto-estima, de injustiça, de valorização. Ocorre-me pensar nas crianças e na competição que, por vezes, ou muitas vezes, se estimula entre elas. Ensinar uma criança a saber perder - sem vergonha, sem dano para o seu valor pessoal, porque ela continuará a ser amada e admirada independentemente das suas vitórias - isso, é tão ou mais importante que estimulá-la a ganhar.
Ao cicatrizar as nossas fendas e falhas básicas, secamos e desertamos a fonte dos sentimentos corrosivos e crescemos pela humildade, pela empatia, pela admiração, pela partilha e pela compaixão. E se não conseguirmos fazê-lo sozinhos, podemos e devemos sempre, procurar ajuda.
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