Sobre a porcaria da depressão



O Manuel e a Rita amavam-se. A Rita ama o Manuel. O Manuel deixou de amar a Rita. O Manuel e a Rita terminam o relacionamento. A Rita ficou triste. Não! A Rita não ficou triste. A Rita ficou abatida profundamente.

Quando perdemos o amor de alguém, o nosso mundo interno abate-se. Depois de duas horas a falar de depressão, a professora Medina pegou num pedaço de giz, desenhou quatro círculos no quadro e disse: 

"Vamos lá resumir o processo depressivo face à perda do amor do objecto. Este círculo corresponde ao mundo objectal, este é o círculo do self, este corresponde ao objecto idealizado e este é o Superego. Temos de considerar ainda duas forças: a líbido e a agressividade."

Bem, achei que seria mais simples pensar no Manuel, na Rita, no Manuel idealizado, na moral da Rita, e já agora, na Rita ideal. A líbido é a nossa energia vital e a agressividade dispensa explicações, é o impulso de destruição - quando o termo agressividade surgir neste contexto pensem em frustração e desprazer.

Ora, o Manuel desinvestiu, afastou-se emocionalmente, deixou de narcisar, de amar a Rita, gerando-se assim, à partida, um processo depressivo. 
Perder o amor do Manuel despoleta agressividade no mundo interno da Rita. A Rita continua a amar o Manuel e não pode dirigir-lhe essa agressividade uma vez que o Manuel já de si não está a investir e a nutrir. O desejo da Rita é o de reverter a situação e não de piorá-la, é salvaguardar a imagem do Manuel que a amava. 
Para tal, existem dois processos: um associado à representação e outro associado ao investimento. É a partir daqui que as coisas se complicam.

1. A idealização do Manuel

Ao nível da representação, o Manuel vai ser tomado para dentro do mundo interno da Rita à custa de um hiperinvestimento. Deste modo, o Manuel, que não está a ser suficientemente bom, é transformado pela Rita, tomado para si, como ideal, surgindo o Manuel idealizado na cabeça da Rita. Só assim, o Manuel perdido, que está a frustrar e a despertar agressividade pode ficar novamente bom. 
Isto implica o investimento da energia vital na idealização do Manuel. Essa energia que faz falta à Rita para ela própria poder viver - para poder dormir, para se concentrar, para correr, para sorrir, para socializar, para trabalhar - essa energia está a ser esgotada na idealização do Manuel, no sentido de salvaguardá-lo.

2. A Culpa 

 Ao mesmo tempo, se o Manuel está a frustrar e não está a abastecer então a resposta genuína da Rita seria uma resposta de agressividade, o que não pode acontecer.  Neste momento, a Rita vai tomar para dentro de si o lado mau do Manuel, aquilo que está a frustrá-la ao que chamamos de introjecto maligno. 
A mensagem que está na base deste movimento é:

"se eu não fui amada, então não devo ser boa e para o Manuel continuar a ser bom, então eu é que sou a má."

A malignidade desta experiência é tomada para dentro da Rita o que a faz sentir cada vez pior. O destino da agressividade que devia ser para fora entrou, neste momento, em curto-circuito e está a punir a Rita, está em auto-agressão, aumentando a sua culpa e inferioridade. 

3. O Abatimento: perda de força

O problema é que este curto-circuito não pode ser neutralizado. Porquê? Porque o que neutraliza uma experiência má é uma experiência boa, mas lembrem-se que a energia vital está a ser esgotada na idealização do Manuel. Sendo assim, a Rita não tem reservas para sair, para procurar novos investimentos, novos objectos de relação, novos mundos alternativos, novas fontes de prazer, não tem energia para viver e como está em auto-agressão também não tem força para prestar contas com o Manuel.
A libido e a agressividade estão comprometidas. 

4. A Moral

Como se não bastasse, a moral da Rita vai rigidificar a agressividade (frustração) limitando a sua expressão, o movimento genuíno para fora. A pobre da Rita está sem força, por isso, vejam a carga que transporta um adulto deprimido. 

5. A Rita Real e a Rita Ideal

Para além da sua moral, a Rita tem um ideal de si. A distância entre a Rita real e Rita ideal não deve ser muito grande, tem de haver um nível óptimo entre o que ela é e o que ela deseja ser. Como é que a Rita vai conseguir pensar chegar a um ideal de si quando está em auto punição, com a agressividade inflectida, em curto-circuito rígido e a líbido investida na idealização do Manuel? A culpa e a inferiorização afastam cada vez mais a Rita do seu ideal fazendo com que se sinta uma porcaria em termos narcísicos. 

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Foi com a palavra "porcaria" que a aula terminou e o giz foi pousado. Todo este processo complica-se com a interferência de toda a nossa história, de padrões e vínculos anteriores cristalizados, com o impacto deste processo nas outras áreas e relações...

Coimbra de Matos fala-nos que para nos se curar uma depressão temos de deprimir a pessoa ainda mais no sentido de conseguir inverter a direção da agressividade e devolver ao exterior a malignidade de toda a experiência tomada a cargo por quem foi deixado. 

Perder o amor de alguém significativo leva com frequência ao abatimento do nosso mundo interno. Muitos são os amigos que nos tentam animar; arrastam-nos para festas, enaltecem as nossas virtudes, oferecem-nos livros de auto-ajuda, um voucher para fazer um mapa astral, uma limpeza espiritual ou uma leitura de cartas, levam-nos aos saldos e nada nos fica bem porque enquanto estivermos em curto-circuito interno, não há energia vital e tudo o que vemos reflectido no espelho é uma porcaria. 

Há quadros depressivos variados e isto é apenas um esboço de um processo, talvez aquele que vos é mais familiar e que vos permite compreender porquê que não adianta arrastar um amigo para uma festa depois do término de uma relação, porquê que não adianta dizer "anima-te" enquanto ele se culpa e idealiza o outro... Também não precisa de um muro de silêncio culpabilizante, precisa de um silêncio sem moral onde possa chorar e ser vulnerável e ajustar contas com o rumo das forças dentro de si.

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© Chez Lili

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