O campo, a cidade e alguns dedos de conversa...



À medida que desço a Avenida da Liberdade em Barcelos reparo naquele casal com duas crianças de pele branca e cabelo muito louro a sorrir e a dizerem "hello!" a todos os que passam, reparo também num outro casal de americanos de mochila às costas e em duas amigas brasileiras que se fotografam em frente à estátua do Bombeiro, reparo no grupo de estudantes do Politécnico, de capas pretas e a ocupar a esplanada inteira do café Nata. Está calor. E nisto, lembro-me de alguns dedos de conversa que fui tendo nos últimos dias.
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"Eu adoro Barcelos, Lili! Não trocaria a minha cidade por nada. Adoro a minha casa, o meu marido, a minha família. Adoro poder andar para o trabalho e estar perto do Porto, de Braga, da Póvoa, de Ponte de Lima, de Guimarães, de Viana. Estamos a 45 minutos do aeroporto e a duas ou três horas de todas as capitais europeias. Eu e o meu marido recusámos oportunidades profissionais incríveis porque há um preço muito alto a pagar quando decidimos "to follow the money". Nós somos felizes aqui. As cidades pequenas, as aldeias até, estão cada vez mais jovens, mais interessantes, mais activas."

"Sabes Lili, estive três meses a fazer uma formação em Lisboa e não me adaptei à capital. Viver em Lisboa? Nem pensar! Também não sabia muito bem como iria resolver a minha vida profissional vivendo no Porto, sei que perdi e continuo a perder muitas oportunidades por estar tão longe do mundo da televisão e dos castings, mas não me arrependo! Estou tranquila. Casei, tenho a minha família perto, adoro a minha casa e acabei por conseguir trabalhar na área da moda e da apresentação a partir do Porto."

"Parece-me que, apesar de viver numa cidade pequena, relativamente longe dos centros urbanos, já viajei mais que muitos amigos que vivem em Londres, Paris ou Barcelona e que acabam por gastar os salários no estilo de vida associado a essas capitais. Como estão longe da família, o único destino de férias acaba por ser sempre o mesmo - Portugal." 

"Curiosamente, sentia-me mais capaz a vários níveis - intelectual, emocional e financeiramente - quando vivia numa cidade mais pequena, ou no campo até. Sentia que tinha mais tempo, que os dias eram mais longos e, consequentemente, descansava mais e aprendia mais também. Lembro-me de estudar, de trabalhar, de ir à piscina, de cultivar as minhas amizades e as minhas relações familiares, de ter aulas de piano, de ler, de escrever, de conseguir dormir oito horas, de me sentir descansada e de sentir a lentidão dos dias. Em Lisboa, todos os dias é sexta-feira, passas a vida no trânsito, no metro, os teus amigos vivem a pelo menos 40 minutos de distância, sentas-te para ler um livro e adormeces, começas a ver uma série e adormeces, as rendas são caras, andas stressada... Aqui, nunca mais é sexta-feira! Gasto cinco euros para fazer as unhas e quinze euros para pintar, cortar e esticar o meu cabelo, a minha casa é linda, leio muito, tenho tempo, é tudo mais barato, há silêncio, sabes? E os fins-de-semana são mais produtivos porque fazemos sempre pequenas viagens e acabamos por visitar cidades e por vivê-las mais intensamente do que aqueles que nelas vivem - ou sobrevivem!"

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Há quem diga que se nós trabalharmos a nossa felicidade pessoal será mais fácil prosperarmos nas outras áreas da nossa vida - no trabalho, na família, no amor. 

Aceito que é importante sairmos da nossa zona de conforto para experimentarmos outros desafios e, com isso, podermos crescer. Porém, questiono-me quais são os limites desse desafio. Até quando devemos aceitar o desconforto em prol do nosso crescimento pessoal? Questiono-me se a dado momento não estaremos só a acumular cansaço e frustrações, orgulho e feridas mal curadas. Questiono-me quantas vezes resistimos à mudança e nos habituamos ao sofrimento, quantas vezes achamos que, dessa forma, estamos a crescer mais do que os outros, esperando assim uma recompensa maior também. Se calhar, já estamos confortáveis naquilo que era o nosso desconforto inicial. 



Lembro-me de ter sido operada a uma variz na perna esquerda. Andei anos a adiar aquele problema. Achava que era muito nova para ser operada às varizes e habituei-me à dor. Eventualmente decidi resolver o assunto e, quando recuperei da operação, percebi o quanto me tinha habituado à sensação de cansaço, de peso e de inchaço naquela perna, pensei no quanto me tinha habituado àquele sofrimento. 

Sabem, também me questiono muitas vezes sobre o número de vezes que precisei de cair, de esfolar os joelhos, o queixo e a testa até aprender a andar. Não me parece que tenham sido assim tantas. O mesmo se passa com os desafios que aceitamos porque achamos que vamos crescer, que vamos construir um currículo melhor, que vamos ganhar mais, que vamos voltar ao nosso país mais fortes, equipados e competitivos e viciamo-nos nisto, num voltar que nunca mais volta! É importante saber parar e recomeçar sem tanto esforço, sem tanto desconforto, com menos desafio. 

Quando cheguei ao Porto, recentemente, pedi ajuda para tirar um bilhete de acesso à linha de Braga. A rapariga que me ajudou perguntou-me de um jeito muito despachado:

- Mas tem o cartão? Se não tem, precisa de comprar um cartão primeiro para poder carregá-lo com os títulos de viagem.
- Não, não tenho. Quando custa o cartão?
- Esqueça, eu dou-lhe o cartão! Eu tenho aqui um.
- Mas eu pago-lhe o cartão.
- Eu ofereço. Eu estou cheia de cartões! Esqueço-me sempre do meu e passo a vida a comprar cartões novos. 


Três dias mais tarde, em Barcelos, na estação de comboios, notei que o multibanco estava fora de serviço. Achei que não ia ter tempo de levantar dinheiro e de chegar a tempo para apanhar o comboio com destino ao Porto. Uma jovem que estava na fila abordou-me e disse:

- Eu pago-lhe o bilhete e quando chegarmos ao Porto você devolve-me o dinheiro. Se você for levantar dinheiro agora vai correr o risco de perder o comboio.

Não é maravilhoso quando um estranho nos aproxima assim? 

Confesso que os desafios começam a cansar-me, os conflitos, a falta de compromisso, a alienação, os problemas e a confusão a mais. Não me importaria de parar de crescer por uns tempos, de parar de me sentir desafiada, de parar de aprender... De parar... de voltar ao nada que achava que era mesmo nada e que afinal... era tudo. 











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© Chez Lili

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