"A linha fantasma" e o desafio da convivência





No filme "A Linha Fantasma", Daniel Day-Lewis interpreta o papel de Reynolds Woodcock, um criador de alta costura de temperamento peculiar e difícil, profundamente obcecado pela sua arte, pelo seu trabalho e pela perfeição. Reynolds conhece Alma, personagem interpretada por Vicky Krieps, com quem desenvolve um romance que vai acabar por desafiar o artista na sua excessiva ordem e temperamento.

Apesar de ter escrito a palavra romance, a relação entre Reynolds e Alma era tudo menos uma relação de amor romântico. Alma era importante na vida do artista, mas a sua importância era secundária, a sua existência era necessariamente desfocada para que não interferisse com o único e verdadeiro amor da sua vida: o amor pela arte.

Cansada de ser um fantasma naquela casa de bonecas e vestidos, Alma decide envenenar Reynolds com uma poção de cogumelos. Astuta o suficiente para não o matar, mas para o colocar apenas numa situação de profunda fragilidade, dor e dependência, Alma consegue assim desarmar Reynolds das suas obsessões, do seu génio difícil para sentir-se, por momentos, próxima dele afectivamente.

Aquando da sua recuperação, Reynolds pede Alma em casamento, reconhecendo assim todo o amor e apoio que esta lhe deu quando estava doente.

O melhor do casamento foi mesmo o próprio pedido! Escusado será dizer que o marido, pouco tempo depois, começou a moer-lhe a cabeça outra vez. Reynolds voltou a si mesmo, ao seu rigor, ao seu isolamento e distanciamento emocional em prol do amor pelo seu trabalho.
Frustrada, Alma volta a envenená-lo. 
A surpresa acontece quando ele próprio descobre que está a ser envenenado e.... Aceita! 

Como Reynolds não se autoriza a descansar, aquele veneno surge como uma droga que ele, voluntariamente, não seria capaz de tomar e que lhe permite desligar-se da sua obsessão pela arte da alta costura. 
Freud dizia que precisamos de amar para não adoecer, mas Reynolds precisava de adoecer para se deixar amar e ser amado, muito além da sua obra. 

Isto é tudo muito poético e bonito, mas a minha única dúvida é?

- Onde é que se apanham cogumelos daqueles? 
Monsanto? 

Há vivências com certas pessoas que são incríveis e há convivências com essas mesmas pessoas que podem ser verdadeiros pesadelos.

 De repente, lembrei-me de um namorado meu que, ao saber que eu gostava de nadar, surpreendeu-me dentro da piscina de touca azul.

-Surpresa!
- O que é que estás aqui a fazer?
- Vim fazer-te companhia!
- Mas eu vou nadar 45 minutos sem parar!

Confesso-vos que me senti como o Reynolds, como se a minha ordem naquele dia tivesse sido interrompida. Lembro-me de sentir uma certa inquietação por ter de partilhar algo que ansiava fazer na paz do senhor. Se fosse um estranho, talvez eu não me importasse de partilhar a pista com ele, mas como era o meu namorado, sentia a obrigação de lhe fazer companhia nas pausas entre o Crawl e a Mariposa.

Estranho desabafo, eu sei...  

O Reynolds era estilista. Eu cá sou actriz e gosto de escrever. Escrevo muito e, às vezes, o simples facto de estar a olhar para uma folha em branco ou para o ecrã do meu computador sem escrever absolutamente nada, não significa que estou a fazer nada e que, por isso, possa ser interrompida ou desafiada para fazer algo mais divertido, ou possa ser acusada de estar a procrastinar.  

"Eu não gosto de confrontos!" 
exclamou o artista, no filme.

Para confrontos, já bastam os nossos próprios pensamentos, a nossa imaginação. 

Conviver com alguém - sobretudo conviver com alguém que é artista - é aprender estes tempos e estas dinâmicas e não interromper compassos inteiros de silêncio, pausas de semibreve, pausas longas, íntimas, de angústia, de pensamento, ou de nada! 

Li recentemente um artigo no qual um escritor dizia algo assim...

- We fall in love with people we find inspiring. If you don't set my pen on fire, how are you going to set my bed on fire?

 Os confrontos não inspiram ninguém. O psiquiatra José Gameiro adverte sempre para o cuidado que devemos ter com a crítica na dinâmica conjugal, quando acusamos e criticamos o outro à medida que vamos descobrindo as nossas diferenças e o que nos afasta daqueles que amamos. 

O Reynolds não gostava de espargos com manteiga e eu gosto de nadar e de escrever sozinha, gosto de tomar o meu café bem quente, não gosto de ver loiça acumulada na pia, como de tudo mas não gosto que venham para o pé de mim dar palpites sobre a forma como cozinho, não gosto de conversar muito sobre o meu trabalho como actriz, não gosto que me apressem, tenho uma pequena obsessão por varrer e aspirar o chão (talvez porque ando sempre descalça), gosto de arrumar a cozinha antes de começar a comer e, por isso, como sempre a comida já fria, falo imenso durante o sono...  e não gosto de tomar o meu pequeno almoço de pijama... 

Contudo, artistas como o Reynolds são sempre acusados de narcisismo, de ter um temperamento complicado, mas serei eu a única a achar que a maior alienação acontece quando nos tornamos como a Alma, quando queremos envenenar alguém porque estamos cansados de "jogar xadrez" com pessoas assim? 

A convivência não é fácil, mas não é obrigatória; não tem de ser nem forçada ou mendigada. A convivência pode ser negociada dentro do possível e se não for possível, porquê perpetuar uma relação até ao banco dos réus? 

Porquê? 

 Eu compreendo a obsessão do artista pela sua obra, mas compreendo menos a obsessão de alguém como a Alma pelo seu artista, que aceita anular-se e ser profundamente infeliz e desamada na sua verdadeira natureza para encaixar no estilo e ordem de vida de Reynolds.  Achei toda aquela relação uma verdadeira doença, onde as únicas mudanças na personagem e no romance com Alma são induzidas por envenenamento com cogumelos mágicos.


José Gameiro já nos diz:

"Casamos com um cabaz de Natal: à frente vemos o caviar e o champanhe e atrás estão a latas de sardinha e de atum."










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