Todos os dias eu converso com os meus medos. Todos os dias eu converso com ela, com a minha amaxofobia. Amaxos significa carruagem e fobia significa o que tu e eu sabemos.
É isso mesmo.
Eu vivi durante anos e anos - e ainda vivo - com este medo conduzir. Eu odeio conduzir. Se o gênio da lâmpada me concedesse um pequeno luxo à escolha, para a vida inteira, o meu luxo seria ter um motorista vinte e quatro horas por dia ao meu dispôr. Parece ridículo, mas é verdade. Sempre vivi em cidades com óptimos serviços de transporte. Metros, autocarros e comboios foram desde sempre a minha solução para as deslocações de trabalho e de lazer. Contudo, sempre reconheci que a opção de conduzir, muito recalcada e anulada em mim, poderia enriquecer bastante a minha independência e a minha confiança a vários níveis. Quantas vezes pensei para mim mesma:
Eu até vivia aqui.... se conduzisse!
Eu até ia ali... se conduzisse!
Eu até trabalharia acolá... se conduzisse!
O que é curioso é que, em 2010, tirei a carta de condução sem qualquer problema na minha cidade natal, Barcelos. No dia em que fiz o exame fugi para a cidade grande, fugi para nunca mais precisar de conduzir outra vez. Sim, no dia em que tirei a carta disse para mim mesma:
"Assunto resolvido! Agora, passem para cá o meu cartão de metro, o Viva Viagem, o Andante ou o meu Oyster Card... conduzir não é, e jamais será, o meu cup of tea!
Conduzir não era para mim, nunca foi! Conduzir sozinha muito menos.
Afirmava-o sem problemas, sem vergonha. Era simplesmente uma opção tomada em prol da minha própria segurança, da minha sanidade mental e da segurança dos outros.
Os anos foram passando e a relação com o meu medo mudou. Comecei a sentir-me verdadeiramente triste por não ser capaz de enfrentá-lo. A minha opção de não querer conduzir começou, pela primeira vez, a ser questionada com muita frustração.
Em Setembro de 2016 pedi a um amigo de família, o Nick Staib, para me ajudar a resolver este medo. O Nick já tinha ajudado outras pessoas com o mesmo problema e, acima de tudo, era uma pessoa paciente, calma e que adorava ajudar e ensinar.
Para além de relembrar tudo aquilo que tinha aprendido em 2010, quando tirei a carta de condução, teria agora de ajustar-me às regras de condução na Inglaterra, com volante à direita. As primeiras cinco aulas foram passadas num espaço bem amplo, sem movimento, ideal para aprender a arrancar e a parar, a estacionar, a recuar, a controlar a embraiagem. Eram aulas extremamente básicas.
No final de cada aula e, sobretudo, de cada pequena conquista, sentia um ligeiro boost na minha confiança e auto-estima, uma sensação que não durava muito tempo pois, rapidamente, lembrava-me que o pior ainda estava para chegar: o medo do trânsito, dos outros condutores, das estradas como nós as conhecemos... esses seriam os conflitos dos próximos capítulos.
Ao fim de vinte aulas fui capaz de conduzir numa zona residencial com um nível de trânsito médio. Nesta altura mudei de casa e interrompi as aulas pois a minha área de residência ficava muito longe do local onde normalmente tentava reaprender a conduzir.
Com o regresso a Portugal fui novamente confrontada com a minha amaxofobia. Lisboa tem uma boa rede de transportes, mas os preços das rendas começam a afastar-nos para a periferia onde sentimos a necessidade de conduzir, para não falar que os estúdios de gravação ficam numa zona um pouco isolada.
Tudo isto para vos dizer que voltei a conduzir. Ainda não consegui aventurar-me sozinha na estrada. Estou completamente dependente de alguém que ocupe o lugar do passageiro, que me faça companhia e que me ajude a, muito lentamente, chegar onde preciso chegar. Confesso que me sinto sempre exausta, sinto que rebento todos os meus fusíveis enquanto conduzo em estado de vigilância máxima. Sinto que consigo conduzir, mas com muito, muito, muito esforço. O meu sogro, o irmão do meu sogro, o George... têm sido os passageiros de serviço e não podia estar mais grata pelo tempo e paciência que têm demonstrado.
Eu tenho o sonho muito pequenino de conduzir normalmente, sem medo, sem precisar de companhia, sem pensamentos catastróficos, sem pesadelos, sem lágrimas. Eu sempre me senti sozinha nesta fobia. Nunca conheci ninguém com este problema. Um dia enquanto conversava com duas colegas de trabalho, acabei por fazê-las confessar que, afinal, também elas sofriam do mesmo. Senti-me compreendida e aliviada.
O curioso tem sido notar que afinal os condutores nas estradas portuguesas não são assim tão impacientes como eu pensava. Antes de entrar no carro preparo-me psicologicamente para ouvir mil buzinadelas na hora que se segue pois aprendi que os latinos são nervosos e agressivos na estrada o que não ajuda quem, como eu, tem pânico de conduzir.
Muito surpreendentemente, tenho sentido o oposto. Tenho sentido que, até agora, muitos condutores foram pacientes, educados e ajudaram-me bastante face às minhas incertezas, à minha lentidão e insegurança de condução.
Todos os dias eu converso com os meus medos e digo-lhes que sonho mandá-los às favas. Digo-lhes que quero o divórcio, que não podemos e nem vamos viver juntos por muito mais tempo.
Um dos meus filmes preferidos chama-se "Learn to Drive" e conta a história de uma mulher que sofre da mesma fobia que eu e de como, muito lentamente, aprendeu a conduzir e a conquistar a sua confiança e independência ao volante da vida.
- It is not a joke. Remember driving is a freedom.
I wish you to enjoy
every kind of freedom... As long as you don't hurt someone.
You promise me?
- Okay, Mr. Singh.
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